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Trabalho exposto no MIS-SP em novembro/ 2021, como parte do projeto Nova Fotografia 2021.

Desde 2015, com a morte da minha mãe, passei a estar com meu pai praticamente todos finais de semana, quando passeávamos por SP ou viajávamos para o interior. Porém, sua saúde vinha pouco a pouco se tornando mais debilitada por conta da idade avançada e do Mal de Alzheimer. Diante disso, instalamos câmeras de segurança no apartamento onde ele vivia, para poder estar próximos mesmo quando fisicamente distantes.

 

Estávamos nesse momento de grande fragilidade quando chegou a pandemia de Covid-19 ao Brasil. Diminuí muito as visitas e passei a monitora-lo mais intensamente pelas câmeras de segurança e por constantes chamadas de vídeo através do celular das cuidadoras. A pequena tela do celular se tornou, então, nossa conexão: a principal forma de eu vê-lo e participar do seu dia e, também, de continuar lhe mostrando o mundo “lá fora”’.  Pedia às cuidadoras para que colocassem o celular próximo a meu pai e conversava com ele. Pedia a elas também que me mostrassem o gato, coisas da casa, o que ele comia, fazia, que programa viam na TV. 

Comecei então a fazer prints das telas das câmeras de segurança e de nossas conversas, interagindo com esse sistema de transmissão num desejo de reter aqueles momentos íntimos e angustiantes. Uma documentação afetiva e tecnológica da passagem do tempo. 

 

O resultado foram imagens precárias, com baixíssima qualidade, e com uma autoria “suspensa”: qual a câmera que fotografava - a que capturava e transmitia ou a que registrava? Talvez as duas - e nenhuma delas.

 

Depois de três semanas nesse processo, meu pai veio a falecer. E então, o que era precário tornou-se valioso a partir de uma carga emocional: um lugar de despedida mediado pelas imagens.

Transformei essa despedida num pequeno livro e num vídeo. E, mais tarde, num conjunto exposto no MIS-SP, dentro do projeto Nova Fotografia 2021.

Alguns prints de tela das conversas com meu pai (entre março e abril de 2020).

Vídeo criado a partir das imagens das câmeras de segurança

Num passado remoto, as imagens não representavam, elas produziam presença. Sua potência era dar corpo a coisas inacessíveis ao olhar: uma vida ancestral, uma divindade, uma força da natureza e tudo o que habitava a noite. Era preciso ter a vivência do tempo, da distância, do invisível e da escuridão para que essa visão se consumasse. Era da ausência que tal presença se alimentava.

A racionalidade moderna reivindicou a superação desse paradoxo e arrancou das imagens a promessa de arquivar tudo, desmistificar tudo, mostrar tudo, iluminar tudo. A ubiquidade das câmeras e das telas é própria desse tempo. Quando a imagem elimina todas as distâncias, não resta nada a ver além de sua superfície.

Foi da pior forma que, recentemente, tivemos amostras dessas antigas experiências: vivenciamos o tempo como uma espera infinita, a distância como isolamento, o invisível como a morte que circula pelo ar, a escuridão como um obscurantismo político que também mata.

Em meio à catástrofe, Solange Quiroga descobre que as imagens ainda estão dispostas a fazer sua parte no esforço de restituir as presenças de que fomos privados. Aqui, a artista compartilha conosco uma síntese do contato que pôde ter com seu pai durante o isolamento. São interações mediadas pela tela de seu celular, essa superfície plana agora adensada por uma conjunção de ausências: todas aquelas impostas pela pandemia, mas também a memória, a consciência e a mobilidade que escapam àquele corpo. Nessas imagens, atualizam-se antigos paradoxos: em toda sua imaterialidade, elas ainda produzem gestos. Em toda sua frieza, as telas ainda transmitem afetos. E com toda volatilidade de seus nós, as redes ainda cumprem sua vocação de construir enredos. 

Ronaldo Entler | acompanhamento curatorial

Fotos da exposição. no MIS-SP | Nov 2021

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